PREFÁCIO DO LIVRO – O POVO FEZ SUA SANTA- DELLANO RIOS.
FOTO: DELLANO RIOS- AUTOR DO LIVRO: O POVO FEZ SUA SANTA.
Em
1958, o real irrompeu na cidade Aurora,cariri cearense. Uma moça de dezesseis
anos foi morta, com incontáveis facadas, por um noivo facínora. Começa a
história de Mártir Francisca que tem desdobramentos e inclui, com vigor, outra
santa no panteão popular. O lugar onde ela tombou ganhou um cruzeiro, depois
uma capela, e tornou-se um lugar de peregrinação.
A jornalista Rozanne Quezado
redigiu um opúsculo dando conta do fato e da manifestação que se que se
esboçava, no início deste milênio. Dellano Rios, então estudante de Comunicação
Social ( habilitação em Jornalismo) da UFC, tomou o relato como ponto de
partida para sua monografia de conclusão de curso. Era uma abordagem mais rica
e generosa da Comunicação, que passava pela Semiótica da Cultura, um olhar que
não é antropológico, e que dialoga com teóricos pouco divulgados e que não
estão e nunca estiveram na moda, como o ucraniano Lotman, o Tcheco Bystrina, e que
tem como grande divulgador no Brasil o professor da PUC de São Paulo, Norval
Baitello Junior.
Dellano
Rios optou por não fazer um trabalho de revisão bibliográfica, que era escassa,
no que se refere ao fato. Intrépido, sem bolsa que custeasse sua viagem, passou
uma semana em Aurora e viu os lugares sagrados, ouviu, ouviu pessoas que estavam
vivas à época do crime e acompanhou a peleja em busca do espólio de Francisca.
Entrava
em cena outro teórico, este da memória e da voz, o suíço que fez carreira
acadêmica no Canadá e esteve no Brasil, o medievalista Paul Zumthor. Certo é
que a monografia alcançou um padrão de qualidade, rigor e criatividade que
levou Dellano Rios, em seguida, ao Programa de
Pós- Graduação em Sociologia da UFC, onde cumpriu seu Mestrado, com
orientação iniciada pelo Prof. Dr. Ismael Pordeus Jr, e concluída por mim. Foi
a oportunidade para dar um fôlego maior ao trabalho, sem perder de vista a
importância do recorte, um ponto nevrálgico da metodologia da pesquisa
acadêmica.
Muita
gente quer colocar tudo o que encontra neste grande “ balaio” e desfoca o
trabalho, que se esgarça e se enfraquece de seu vigor e da novidade que traria. Dellano Rios não caiu nestas
armadilhas. Seu trabalho continuou forte, consistente ( do ponto de vista teórico) e sua escrita entra
em um novo paradigma, onde o rigor que se cobra ganha nuances de outras
contribuições e torna o texto prazeroso, no sentido empregado pelo estudioso
Roland Barthes.
Mártir
Francisca pode ser (foi e será) um álibi para se estudar a gênese de um mito,
aqui compreendido como algo que se engendra no campo da fala que se amplifica,
se irradia e vai construindo e dando ao relato, que sai das páginas do parecer
jurídico e das evocações da cobertura policial, para ganhar o estatuto de uma
fala carregada de significação. Dellano Rios teceu muito bem essa trama, essa
superposição de falas, com a propriedade
de quem é jornalista, mas sem a leviandade do qual são acusados estes
profissionais da Mídia, que escrevem sobre qualquer coisa. Ele escolheu bem sobre o que queria escrever. Usou o crime, o sangue,
a capela, as velas e as procissões como reforços de uma “canonização espontânea”,
ainda no dizer de Zumthor.
O
Povo elege e constrói seus santos. Trata-se de um trabalho delicado de
artesanato, que exige a sofreguidão da fé e a delicadeza “ zen” por meio da
qual um artífice escava a madeira, modela o barro, tece a folha no trançado,
recorta o couro ou trabalha as palavras no folheto de cordel ou no ponteio da
viola da cantoria.
Outros
santos foram “ canonizados” pelo povo. No caso cearense, Mártir Isabel, em
Guaraciaba do Norte, Francisca Carla, em Tianguá; o soldado Hortênsio, em Viçosa
do Ceará; para não deixar de falar no mais impactante e vigoroso de todos, O Padre
Cicero Romão Batista, nascido no Crato e “fundador” do Juazeiro do Norte,
do qual está em curso um processo de reabilitação que poderá levá-lo, não se sabe em quanto tempo,
aos dos templos católicos. Há muito, Cíocero, o “padim”, falecido em 1934, mas
envolvido em fatos extraordinários desde que a hóstia se transformou em sangue,
quando da comunhão da Beata Maria de Araújo,
na Semana Santa de 1889, é uma referência nas romarias e no catolicismo
sertanejo.
Dellano
Rios não cai no pastiche e rejeita o paródico. Ele atualiza o mito e fala da
importância destas referências para o imaginário social. Sua dissertação, que
agora se transforma em livro, traz as
marcas da seriedade de uma geração de
pesquisadores, saídos dos bancos da Universidade, sem os cacoetes das
infindáveis notas de rodapé e sem as muletas teóricas que tornam tantos
trabalhos de uma previsibilidade que angustia e castra os resultados. O Que se
lê aqui é trabalho acadêmico que aponta para a explicação do mito da Mártir
Francisca e nos ajuda a compreender um
pouco mais dos meandros, dos sonhos, anseios, medos e expectativas dos fiéis da
santa de Aurora. É um trabalho que se lê de uma vez só, de tão agradável e de
tão bem urdido. Ressalte-se aqui a afinidade que Dellano Rios mantém com a
literatura. Ele imbrica códigos, segue seu rumo, se ampara nos autores
legitimados e faz um texto que explode
de vigor, criatividade, e sinceridade. Fica a expectativa de uma contribuição
ainda maior deste jovem pesquisador que tem ainda tanto chão para palmilhar.
Gilmar
de Carvalho
Jornalista, Escritor e Pesquisador.
Referência
BibliográficaR 586p Rios, Dellano – O Povo Fez sua
Santa./ Dellano Rios- Fortaleza: Secult, 2011. ( Prêmio Guilherme Studart) l.
Literatura brasileira – ensaio I. Titulo CDD: 870.3
Transcrição
autorizada pelo autor Dellano Rios ao Professor Luiz Domingos de Luna, a que a
todos, o direito de repostagem em blogs, sites e outros veículos de comunicação
para o Engrandecimento da Epistemologia Genética da Humanidade para o bem.