quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

PREFÁCIO DO LIVRO – O POVO FEZ SUA SANTA- DELLANO RIOS.

FOTO: DELLANO  RIOS- AUTOR DO LIVRO: O POVO FEZ SUA SANTA.

Em 1958, o real irrompeu na cidade Aurora,cariri cearense. Uma moça de dezesseis anos foi morta, com incontáveis facadas, por um noivo facínora. Começa a história de Mártir Francisca que tem desdobramentos e inclui, com vigor, outra santa no panteão popular. O lugar onde ela tombou ganhou um cruzeiro, depois uma capela, e tornou-se um lugar de peregrinação.


A jornalista Rozanne Quezado redigiu um opúsculo dando conta do fato e da manifestação que se que se esboçava, no início deste milênio. Dellano Rios, então estudante de Comunicação Social ( habilitação em Jornalismo) da UFC, tomou o relato como ponto de partida para sua monografia de conclusão de curso. Era uma abordagem mais rica e generosa da Comunicação, que passava pela Semiótica da Cultura, um olhar que não é antropológico, e que dialoga com teóricos pouco divulgados e que não estão e nunca estiveram na moda, como o ucraniano Lotman, o Tcheco Bystrina, e que tem como grande divulgador no Brasil o professor da PUC de São Paulo, Norval Baitello Junior.


Dellano Rios optou por não fazer um trabalho de revisão bibliográfica, que era escassa, no que se refere ao fato. Intrépido, sem bolsa que custeasse sua viagem, passou uma semana em Aurora e viu os lugares sagrados, ouviu, ouviu pessoas que estavam vivas à época do crime e acompanhou a peleja em busca do espólio de Francisca.


Entrava em cena outro teórico, este da memória e da voz, o suíço que fez carreira acadêmica no Canadá e esteve no Brasil, o medievalista Paul Zumthor. Certo é que a monografia alcançou um padrão de qualidade, rigor e criatividade que levou Dellano Rios, em seguida, ao Programa de  Pós- Graduação em Sociologia da UFC, onde cumpriu seu Mestrado, com orientação iniciada pelo Prof. Dr. Ismael Pordeus Jr, e concluída por mim. Foi a oportunidade para dar um fôlego maior ao trabalho, sem perder de vista a importância do recorte, um ponto nevrálgico da metodologia da pesquisa acadêmica.


Muita gente quer colocar tudo o que encontra neste grande “ balaio” e desfoca o trabalho, que se esgarça e se enfraquece de seu vigor e da novidade que  traria. Dellano Rios não caiu nestas armadilhas. Seu trabalho continuou forte, consistente ( do  ponto de vista teórico) e sua escrita entra em um novo paradigma, onde o rigor que se cobra ganha nuances de outras contribuições e torna o texto prazeroso, no sentido empregado pelo estudioso Roland Barthes.


Mártir Francisca pode ser (foi e será) um álibi para se estudar a gênese de um mito, aqui compreendido como algo que se engendra no campo da fala que se amplifica, se irradia e vai construindo e dando ao relato, que sai das páginas do parecer jurídico e das evocações da cobertura policial, para ganhar o estatuto de uma fala carregada de significação. Dellano Rios teceu muito bem essa trama, essa superposição de falas, com  a propriedade de quem é jornalista, mas sem a leviandade do qual são acusados estes profissionais da Mídia, que escrevem sobre qualquer coisa.  Ele escolheu bem  sobre  o que queria escrever. Usou o crime, o sangue, a capela, as velas e as procissões como reforços de uma “canonização espontânea”, ainda no dizer de Zumthor.


O Povo elege e constrói seus santos. Trata-se de um trabalho delicado de artesanato, que exige a sofreguidão da fé e a delicadeza “ zen” por meio da qual um artífice escava a madeira, modela o barro, tece a folha no trançado, recorta o couro ou trabalha as palavras no folheto de cordel ou no ponteio da viola da cantoria.


Outros santos foram “ canonizados” pelo povo. No caso cearense, Mártir Isabel, em Guaraciaba do Norte, Francisca Carla, em Tianguá; o soldado Hortênsio, em Viçosa do Ceará; para não deixar de falar no mais impactante e vigoroso de todos, O Padre Cicero Romão Batista, nascido no Crato e “fundador” do Juazeiro do Norte, do  qual está em curso  um processo de reabilitação que  poderá levá-lo, não se sabe em quanto tempo, aos dos templos católicos. Há muito, Cíocero, o “padim”, falecido em 1934, mas envolvido em fatos extraordinários desde que a hóstia se transformou em sangue, quando da comunhão da Beata Maria de Araújo,  na Semana Santa de 1889, é uma referência nas romarias e no catolicismo sertanejo.


Dellano Rios não cai no pastiche e rejeita o paródico. Ele atualiza o mito e fala da importância destas referências para o imaginário social. Sua dissertação, que agora se transforma em  livro, traz as marcas da seriedade de uma geração  de pesquisadores, saídos dos bancos da Universidade, sem os cacoetes das infindáveis notas de rodapé e sem as muletas teóricas que tornam tantos trabalhos de uma previsibilidade que angustia e castra os resultados. O Que se lê aqui é trabalho acadêmico que aponta para a explicação do mito da Mártir Francisca e nos ajuda  a compreender um pouco mais dos meandros, dos sonhos, anseios, medos e expectativas dos fiéis da santa de Aurora. É um trabalho que se lê de uma vez só, de tão agradável e de tão bem urdido. Ressalte-se aqui a afinidade que Dellano Rios mantém com a literatura. Ele imbrica códigos, segue seu rumo, se ampara nos autores legitimados e faz um texto que  explode de vigor, criatividade, e sinceridade. Fica a expectativa de uma contribuição ainda maior deste jovem pesquisador que tem ainda tanto chão para palmilhar.


Gilmar de Carvalho

Jornalista, Escritor e Pesquisador.


Referência BibliográficaR 586p Rios, Dellano – O Povo Fez sua Santa./ Dellano Rios- Fortaleza: Secult, 2011. ( Prêmio Guilherme Studart) l. Literatura brasileira – ensaio I. Titulo CDD: 870.3


Transcrição autorizada pelo autor Dellano Rios ao Professor Luiz Domingos de Luna, a que a todos, o direito de repostagem em blogs, sites e outros veículos de comunicação para o Engrandecimento da Epistemologia Genética da Humanidade para o bem.