domingo, 7 de dezembro de 2014

O POVO FEZ SUA SANTA -1.4. A EXPLOSÃO DA ESCRITA – DELLANO RIOS.

FOTO: DELLANO RIOS. AUTOR DO LIVRO O POVO FEZ SUA SANTA.
Com o livro Paixão e Sangue de Mártir é fixado uma tradição narrativa até então baseada na oralidade. Lembro-me que “a fixação na e através da escrita de uma tradição que foi oral necessariamente não põe a fim a ela nem a marginaliza definitivamente (PordeusJr., 2000:247).Ao contrário, é possível pensar em tradições que se imbricam. Ou ainda em um fio que se esgueira pelo bordado e transforma o padrão de cores e figuras que se desenham.

De um lado, está a escrita que se valeu da oralidade para que pudesse vir a ser. A Obra de Quezado não me tributária dos devotos narradores de Aurora no que diz respeito às estruturas elementares da língua, nem ao estilo ou, ainda, às regras da escrita jornalística. Ainda assim,  é a voz dos fiéis que constitui a matéria prima de sua narrativa.

A estrutura já estava lá, mas não poderia contar aquela história sem recorrer à tradição que residia na oralidade. Mais tarde, seria o oral a valer do escrito como outra fonte.

Com o aparecimento de uma hagiografia, o texto, no sentido estrito da palavra, ressoa nas narrativas sobre Mártir Francisca.

No entanto, o escrito não é apenas mais uma voz que possa integrar o repertório dos narradores. “ A escrita { atua} como memória fundadora, um ponto de partida inteiramente novo” ( PordeusJr.,2000:250).

No caso do culto de Aurora, ela cumpriu a função de catalisadora, desencadeando uma série de novos discursos, orais e escritos.

Á época do lançamento do livro de Rozanne Quezado, a imprensa cearense noticiou o evento. A história de Mártir Francisca passou a integrar o repertório de pautas que, com certa freqüência reaparecem nas páginas dos jornais impressos, televisivos, radiofônico e on- line. No campo audiovisual, em 2008, o fotógrafo Francisco Sousa realizou um documentário em curta metragem, ainda inédito em festivais e na TV, que registrava as práticas dos devotos no 50º aniversário de morte de Francisca.

Nos casos acima citados, os discursos sobre a mártir se manifestam como uma narração efêmera, que dificilmente se prestará a consultas posteriores. Diferente deles e, portanto, mais próximo da primeira hagiografia de Mártir Francisca, estão os textos disponibilizados no website da Prefeitura Municipal de Aurora (www.aurora.ce.gov.br). Até o final de 2010, pelo menos três textos dedicados à santa podiam ser lidos no endereço eletrônico. Um deles, intitulada A Capelinha da Moça reproduz a introdução do livro de Rozanne Quezado. A Apropriação é registrada na própria página, que traz o nome da autora e a fonte onde o material  foi copiado- o que releva que aquela hagiografia de Mártir Francisca não apenas desencadeou outras, mas que se estendeu e encontrou novos canais de transmissão.

O Segundo texto é Mártir Francisca: um auto – de – fé, oblação e graças, de José Cícero, “Pesquisador, Poeta e Escritor”, natural de Aurora. Nele, se confirma a tendência do escrito a historicizar o que é narrado.

O Livro de Rozanne Quezado serviu para registrar os episódios de um determinado momento da historia do culto de Mártir Francisca.

O Texto de Cícero parece exercer papel semelhante, concentrando-se, por sua vez, em acontecimentos mais recentes. Não há uma preocupação em apresentar a história de Mártir Francisca, narrada apenas nas linhas iniciais do segundo parágrafo do texto. O autor escreve sobre o culto sua configuração atual e as transformações por que passou nos últimos anos, como a entender que a história do martírio já  é suficientemente conhecida.

O Discurso oscila entre a intenção de objetividade, de um pensamento materialista de bases científicas, e a crença do devoto, cuja palavra exulta a mártir e divulga seu culto.

No primeiro parágrafo do texto, deixa isso claro:
Se alguém ainda tem dúvida acerca da antiga afirmação que diz que “a fé move montanhas”, diríamos que aqui na cidade de Aurora na região do Cariri no alto do Salgado esta assertiva há muito vem ganhando ares de verdade ao ponto de multidões inteiras jurarem ter alcançado inúmeras graças, curas e milagres ( Cícero, 2008)

O autor toma as graças como parte de um discurso dos fiéis para não se apropriar dele, credita a autoria deste, mesmo de maneira muito vaga. Mais adiante, ainda no mesmo parágrafo, quando fala de “um longo histórico de casos supostamente milagrosos” ( Cícero, 2008 – grifo meu), o autor reafirma este olhar distanciado.

O Que se segue é, então uma descrição do culto. Em meio a ela, revela de uma tímida transformação. O Autor diz num parágrafo breve:

Até mesmo para os céticos, o local {da capela de Mártir Francisca} tem o poder de transmitir uma sensação de paz e  refrigério interior. “É uma verdadeira calmaria para  nossa alma explica o professor Luiz Domingos, profundo devoto e colaborador de mártir Francisca. (Cícero,2008).

Como se vê, a afirmação do autor não é validada pela citação que a sucede. Aos céticos, credita experiências de ordem não material e em seguida, evoca um devoto da Mártir para dar seu testemunho.

O Ato falho cometido marca a transição para a tomada de uma nova posição em relação ao culto.

Em resumo, diremos desde já, que a figura de mártir Francisca assim como a importância contribuem para o engrandecimento, cristão e espiritual de todo o povo aurorense, quiçá da região. Por isto haveremos de no mínimo, respeitar a opção daqueles que possuem o verdadeiro  dom de enxergar nas coisas do espírito tudo aquilo que os materialistas não as vêem por uma existência inteira.

(...) O desrespeito sistemático a este singular auto –de –fé, bem como a individualidade dos que crêem no sagrado, também constituem uma forma de fanatismo das mais injustificáveis e deprimente. De tal sorte, digamos ainda: Viva mártir Francisca – a santa popular de Aurora. Por que Deus sempre se manterá do lado  Povo. (Cícero, 2008 – sic)

O Autor caminha para a adesão ao culto. Surgem novas possibilidades de compreensão das passagens anteriores do texto. Relido, percebe-se que, a despeito das passagens em que o autor procura se mostrar como um observador distanciado dos  fenômenos, a finalidade é mais uma vez a de promover o culto. Tal qual se pede das produções de caráter hagiográfico.

É possível ler Paixão e sangue de Mártir Francisca: um auto –de –fé, oblação e graças como partes de um  mesmo conjunto hagiográfico. Relacionados, os dois textos operam como  se fosse um  e, mesmo vistos agrupados respeitam as exigências feitas às hagiografias. Enquanto, o livro de Rozzane Quezado se concentra nas provações por que Francisca passou, o texto de José Cícero centra-se na glorificação da mártir pelo culto.

Os dois textos não devem ser tomados, no entanto, como obras desiguais, com pesos desiguais, em que destacadas as provações vivenciadas pelos protagonistas e a outra, as homenagens a sua memória.

Quando fala da vida de Francisca, José Cícero não vai muito além de repetir dados que já se encontravam no escrito de Quezado. O que há é uma pequena adição, ao precisar o local em que a jovem foi morta,” a localidade do sítio padre Mororó- Várzea de Conta” ( Cícero, 2008 – grifo meu)

Já no  que toca às práticas devocionais em Aurora, o autor é mais preciso, tenso a sensibilidade de fazer ressalvar quanto a variações de uma mesma prática:

(...) No  exato local onde a jovem foi martirizada  agora existe uma capela que recebera o apelido de “ capelinha da moça” ladeada por um solitário pé de Pereiro, uma resistente árvore nativa da caatinga sertaneja. Segundo dizem, o vegetal inclusive, servira de abrigo, fazendo sombra para Francisca nos seus  últimos suspiros. De modo que na crença do povo também passou a conter propriedades milagrosas.  O Chá tanto quanto  a efusão de suas folhas e cascas conseguem curar uma série de doenças. Outros recolhem suas folhas  simplesmente para mantê-las em casa junto aos santos como um amuleto de proteção contra  os maus espíritos e mau olhado. Ou ainda, como mero  souvenir de lembrança de Francisca. Na época do infausto acontecimento tal planta era apenas uma moita. Hoje, a vetusta árvore vem despertando a admiração e a curiosidade por parte dos devotos e fies de mártir Francisca que no decurso de meio século vem  sendo  considerado por muitos, como a autêntica “ santa popular” de Aurora. (Cícero, 2008)’’

José Cícero retoma acontecimentos que se deram imediatamente após a morte da jovem e os liga a crença e práticas de Aurora. É particularmente interessante ver, aqui, a expressão de uma sacralidade em torno da mártir, que pode ser experimentada pelos  homens por meio de um contado direto.

A árvore torna-se sagrada. O Pé de pereiro( Aspidosperma pyrifollium Mart) repete uma imagem, em geral, muito comum na simbologia da árvore: aquela que faz o ser vegetal uma ponte cujas  raízes tocam o inferno e irrompem na terra, para seus galhos e folhas alcançarem o céu ( Cirlot, 1984:99). Bachelard  também  reconhece essa imagem de árvore e, para  esplicita, recorre   a uma bela passagem que toma emprestado  do escritor D.H. Lawrence:

Com um ímpeto prodigioso, projeta para baixo  até o âmago da terra, lá onde os mortos afundam na escuridão, no úmido e denso subsolo, e de outro lado, volta-se para as alturas de ar... Tão vasto, tão poderoso e exultante em ambas as direções( Bachelard, 1990: 214).

A Verticalidade da  árvore, sugere Bachelard, é a verticalidade de uma homem ( 1990: 211).  Tal interpretação sugere pelo menos duas leituras no caso  do culto de  Mártir Francisca de Aurora: Ajuda a explicar  o apego dos devotos à árvore; e a identificação da própria santa com o vegetal.

Em relação a esta última hipótese, lembro-me das lendas da tradição católica portuguesa, segundo as  quais o corpo de uma pessoa assassinada pode se transformar em árvore ( Espírito Santo, 1990:43).
No caso de Francisca, é possível visualizar essa transformação, operada em nível simbólico.

Seguindo a tese desta identificação Mártir Francisca/ pé de pereiro , vê-se a sacralização  da árvore, que se transforma de uma “moita” em árvore miraculosa, reproduzir-se na transformação da própria  mártir, o autor conclui a passagem citando a crença de devotos que a tomam por “ autêntica “santa popular de Aurora”( Cícero 2008) Como se viu antes  até agora – e se verá mais adiante – não se deve desprezar as vezes em  que os narradores atribuem a Mártir Francisca o titulo de Santa.

Índice de que tensão entre o culto e a igreja, o tema será tratado mais adiante, quando  falar da dimensão oral das narrativas( capítulo 2) e do material de que são feitas as narrativas (capitulo 3). Será nesta última parte, também, que retomaremos as informações restantes do texto de José Cícero acerca da topologia do sagrado, dos objetos e das práticas devocionais do culto.

Há ainda, como antes afirmei, um terceiro texto no website da Prefeitura de Aurora. Trata-se do Hino a Mártir Francisca, de autoria do professor Luiz Domingos de Luna, penitente e Decurião da Ordem Santa Cruz, também escritor e pesquisador das manifestações culturais do município.


Oh! Mártir Viva!
Oh! Mártir Pura!
Oh! Mártir Gloriosa!


Tua vida, teu sacrifício, alimenta nossa fé.
És aurora da crença popular
O Teu martírio é a busca de nossa cruz
Tua inocência
Tua bondade
Tua pureza
Sempre a nos olhar
E a todos nós conduz
Cuida de nós ó pequenina
Ensina-nos a amar e perdoar


Mártir Francisca eu te clamo nas minhas orações
“Orai, rezai, cantai”
Confortai os nossos corações.


Daí paciência, paz e conforto nas tribulações!
Sou teu devoto Oh! Pequenina
Oh! Menina Pura de Luz!
Levai os teus devotos
Os braços de Jesus


Daí a nós o virgem Mártir
A tua candura
Para um grande abraço
Na mãe de Jesus!
(Luna, 2008)


Diferente dos discursos anteriores, esse troca a prosa pela poesia. Com tal passagem, despe-se de intenção ligadas a uma racionalidade de base científica.

Parti do território narrativo da prosa, de uma escrita marcada pelo oral. Agora, chego à poesia, com seus versos mais afeitos à memorização chego, portanto, ao território da voz. E é a ela que me volto a seguir.
Referência Bibliográfica

Rios, Dellano – O Povo Fez sua Santa./ Dellano Rios- Fortaleza: Secult, 2011. (Prêmio Guilherme Studart) l. Literatura brasileira – ensaio I. Titulo


Transcrição autorizada pelo autor Dellano Rios ao Professor Luiz Domingos de Luna, que a todos, o direito de repostagem em blogs, sites e outros veículos de comunicação para o Engrandecimento da Epistemologia Genética da Humanidade para o bem.