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FOTO: DELLANO RIOS. AUTOR DO LIVRO O POVO FEZ SUA SANTA.
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Com
o livro Paixão e Sangue de Mártir é fixado uma tradição narrativa até então
baseada na oralidade. Lembro-me que “a fixação na e através da escrita de uma
tradição que foi oral necessariamente não põe a fim a ela nem a marginaliza definitivamente (PordeusJr., 2000:247).Ao contrário, é possível pensar em
tradições que se imbricam. Ou ainda em um fio que se esgueira pelo bordado e
transforma o padrão de cores e figuras que se desenham.
De
um lado, está a escrita que se valeu da oralidade para que pudesse vir a ser. A
Obra de Quezado não me tributária dos devotos narradores de Aurora no que diz
respeito às estruturas elementares da língua, nem ao estilo ou, ainda, às
regras da escrita jornalística. Ainda assim,
é a voz dos fiéis que constitui a matéria prima de sua narrativa.
A
estrutura já estava lá, mas não poderia contar aquela história sem recorrer à
tradição que residia na oralidade. Mais tarde, seria o oral a valer do escrito
como outra fonte.
Com
o aparecimento de uma hagiografia, o texto, no sentido estrito da palavra,
ressoa nas narrativas sobre Mártir Francisca.
No
entanto, o escrito não é apenas mais uma voz que possa integrar o repertório
dos narradores. “ A escrita { atua} como memória fundadora, um ponto de partida
inteiramente novo” ( PordeusJr.,2000:250).
No
caso do culto de Aurora, ela cumpriu a função de catalisadora, desencadeando
uma série de novos discursos, orais e escritos.
Á
época do lançamento do livro de Rozanne Quezado, a imprensa cearense noticiou o
evento. A história de Mártir Francisca passou a integrar o repertório de pautas
que, com certa freqüência reaparecem nas páginas dos jornais impressos,
televisivos, radiofônico e on- line. No campo audiovisual, em 2008, o fotógrafo
Francisco Sousa realizou um documentário em curta metragem, ainda inédito em
festivais e na TV, que registrava as práticas dos devotos no 50º aniversário de
morte de Francisca.
Nos
casos acima citados, os discursos sobre a mártir se manifestam como uma
narração efêmera, que dificilmente se prestará a consultas posteriores.
Diferente deles e, portanto, mais próximo da primeira hagiografia de Mártir
Francisca, estão os textos disponibilizados no website da Prefeitura Municipal
de Aurora (www.aurora.ce.gov.br). Até
o final de 2010, pelo menos três textos dedicados à santa podiam ser lidos no
endereço eletrônico. Um deles, intitulada A Capelinha da Moça reproduz a
introdução do livro de Rozanne Quezado. A Apropriação é registrada na própria
página, que traz o nome da autora e a fonte onde o material foi copiado- o que releva que aquela
hagiografia de Mártir Francisca não apenas desencadeou outras, mas que se
estendeu e encontrou novos canais de transmissão.
O
Segundo texto é Mártir Francisca: um auto – de – fé, oblação e graças, de José
Cícero, “Pesquisador, Poeta e Escritor”, natural de Aurora. Nele, se confirma a
tendência do escrito a historicizar o que é narrado.
O
Livro de Rozanne Quezado serviu para registrar os episódios de um determinado
momento da historia do culto de Mártir Francisca.
O
Texto de Cícero parece exercer papel semelhante, concentrando-se, por sua vez,
em acontecimentos mais recentes. Não há uma preocupação em apresentar a
história de Mártir Francisca, narrada apenas nas linhas iniciais do segundo
parágrafo do texto. O autor escreve sobre o culto sua configuração atual e as
transformações por que passou nos últimos anos, como a entender que a história
do martírio já é suficientemente
conhecida.
O
Discurso oscila entre a intenção de objetividade, de um pensamento materialista
de bases científicas, e a crença do devoto, cuja palavra exulta a mártir e
divulga seu culto.
No
primeiro parágrafo do texto, deixa isso claro:
Se
alguém ainda tem dúvida acerca da antiga afirmação que diz que “a fé move
montanhas”, diríamos que aqui na cidade de Aurora na região do Cariri no alto
do Salgado esta assertiva há muito vem ganhando ares de verdade ao ponto de
multidões inteiras jurarem ter alcançado inúmeras graças, curas e milagres (
Cícero, 2008)
O
autor toma as graças como parte de um discurso dos fiéis para não se apropriar
dele, credita a autoria deste, mesmo de maneira muito vaga. Mais adiante, ainda
no mesmo parágrafo, quando fala de “um longo histórico de casos supostamente
milagrosos” ( Cícero, 2008 – grifo meu), o autor reafirma este olhar
distanciado.
O
Que se segue é, então uma descrição do culto. Em meio a ela, revela de uma
tímida transformação. O Autor diz num parágrafo breve:
Até
mesmo para os céticos, o local {da capela de Mártir Francisca} tem o poder de
transmitir uma sensação de paz e
refrigério interior. “É uma verdadeira calmaria para nossa alma explica o professor Luiz Domingos,
profundo devoto e colaborador de mártir Francisca. (Cícero,2008).
Como
se vê, a afirmação do autor não é validada pela citação que a sucede. Aos
céticos, credita experiências de ordem não material e em seguida, evoca um
devoto da Mártir para dar seu testemunho.
O
Ato falho cometido marca a transição para a tomada de uma nova posição em
relação ao culto.
Em
resumo, diremos desde já, que a figura de mártir Francisca assim como a
importância contribuem para o engrandecimento, cristão e espiritual de todo o
povo aurorense, quiçá da região. Por isto haveremos de no mínimo, respeitar a
opção daqueles que possuem o verdadeiro
dom de enxergar nas coisas do espírito tudo aquilo que os materialistas
não as vêem por uma existência inteira.
(...)
O desrespeito sistemático a este singular auto –de –fé, bem como a
individualidade dos que crêem no sagrado, também constituem uma forma de fanatismo
das mais injustificáveis e deprimente. De tal sorte, digamos ainda: Viva mártir
Francisca – a santa popular de Aurora. Por que Deus sempre se manterá do lado Povo. (Cícero, 2008 – sic)
O
Autor caminha para a adesão ao culto. Surgem novas possibilidades de compreensão
das passagens anteriores do texto. Relido, percebe-se que, a despeito das
passagens em que o autor procura se mostrar como um observador distanciado
dos fenômenos, a finalidade é mais uma
vez a de promover o culto. Tal qual se pede das produções de caráter
hagiográfico.
É
possível ler Paixão e sangue de Mártir Francisca: um auto –de –fé, oblação e
graças como partes de um mesmo conjunto
hagiográfico. Relacionados, os dois textos operam como se fosse um
e, mesmo vistos agrupados respeitam as exigências feitas às
hagiografias. Enquanto, o livro de Rozzane Quezado se concentra nas provações
por que Francisca passou, o texto de José Cícero centra-se na glorificação da
mártir pelo culto.
Os
dois textos não devem ser tomados, no entanto, como obras desiguais, com pesos
desiguais, em que destacadas as provações vivenciadas pelos protagonistas e a
outra, as homenagens a sua memória.
Quando
fala da vida de Francisca, José Cícero não vai muito além de repetir dados que
já se encontravam no escrito de Quezado. O que há é uma pequena adição, ao
precisar o local em que a jovem foi morta,” a localidade do sítio padre Mororó-
Várzea de Conta” ( Cícero, 2008 – grifo meu)
Já
no que toca às práticas devocionais em
Aurora, o autor é mais preciso, tenso a sensibilidade de fazer ressalvar quanto
a variações de uma mesma prática:
(...)
No exato local onde a jovem foi
martirizada agora existe uma capela que
recebera o apelido de “ capelinha da
moça” ladeada por um solitário pé de Pereiro, uma resistente árvore nativa da
caatinga sertaneja. Segundo dizem, o vegetal inclusive, servira de abrigo,
fazendo sombra para Francisca nos seus
últimos suspiros. De modo que na crença do povo também passou a conter
propriedades milagrosas. O Chá tanto
quanto a efusão de suas folhas e cascas
conseguem curar uma série de doenças. Outros recolhem suas folhas simplesmente para mantê-las em casa junto aos
santos como um amuleto de proteção contra
os maus espíritos e mau olhado. Ou ainda, como mero souvenir de lembrança de Francisca. Na época
do infausto acontecimento tal planta era apenas uma moita. Hoje, a vetusta
árvore vem despertando a admiração e a curiosidade por parte dos devotos e fies
de mártir Francisca que no decurso de meio século vem sendo
considerado por muitos, como a autêntica “ santa popular” de Aurora.
(Cícero, 2008)’’
José
Cícero retoma acontecimentos que se deram imediatamente após a morte da jovem e
os liga a crença e práticas de Aurora. É particularmente interessante ver, aqui, a expressão de uma
sacralidade em torno da mártir, que pode ser experimentada pelos homens por meio de um contado direto.
A
árvore torna-se sagrada. O Pé de pereiro( Aspidosperma pyrifollium Mart) repete
uma imagem, em geral, muito comum na simbologia da árvore: aquela que faz o ser
vegetal uma ponte cujas raízes tocam o
inferno e irrompem na terra, para seus galhos e folhas alcançarem o céu (
Cirlot, 1984:99). Bachelard também reconhece essa imagem de árvore e, para esplicita, recorre a uma bela passagem que toma emprestado do escritor D.H. Lawrence:
Com
um ímpeto prodigioso, projeta para baixo
até o âmago da terra, lá onde os mortos afundam na escuridão, no úmido e
denso subsolo, e de outro lado, volta-se para as alturas de ar... Tão vasto,
tão poderoso e exultante em ambas as direções( Bachelard, 1990: 214).
A
Verticalidade da árvore, sugere
Bachelard, é a verticalidade de uma homem ( 1990: 211). Tal interpretação sugere pelo menos duas
leituras no caso do culto de Mártir Francisca de Aurora: Ajuda a
explicar o apego dos devotos à árvore; e
a identificação da própria santa com o vegetal.
Em
relação a esta última hipótese, lembro-me das lendas da tradição católica
portuguesa, segundo as quais o corpo de
uma pessoa assassinada pode se transformar em árvore ( Espírito Santo, 1990:43).
No
caso de Francisca, é possível visualizar essa transformação, operada em nível
simbólico.
Seguindo
a tese desta identificação Mártir Francisca/ pé de pereiro , vê-se a sacralização da árvore, que se transforma de uma “moita”
em árvore miraculosa, reproduzir-se na transformação da própria mártir, o autor conclui a passagem citando a
crença de devotos que a tomam por “ autêntica “santa popular de Aurora”( Cícero
2008) Como se viu antes até agora – e se
verá mais adiante – não se deve desprezar as vezes em que os narradores atribuem a Mártir Francisca
o titulo de Santa.
Índice
de que tensão entre o culto e a igreja, o tema será tratado mais adiante,
quando falar da dimensão oral das
narrativas( capítulo 2) e do material de que são feitas as narrativas (capitulo
3). Será nesta última parte, também, que retomaremos as informações restantes
do texto de José Cícero acerca da topologia do sagrado, dos objetos e das
práticas devocionais do culto.
Há
ainda, como antes afirmei, um terceiro texto no website da Prefeitura de
Aurora. Trata-se do Hino a Mártir Francisca, de autoria do professor Luiz
Domingos de Luna, penitente e Decurião da Ordem Santa Cruz, também escritor e
pesquisador das manifestações culturais do município.
Oh!
Mártir Viva!
Oh!
Mártir Pura!
Oh!
Mártir Gloriosa!
Tua
vida, teu sacrifício, alimenta nossa fé.
És
aurora da crença popular
O
Teu martírio é a busca de nossa cruz
Tua
inocência
Tua
bondade
Tua
pureza
Sempre
a nos olhar
E
a todos nós conduz
Cuida
de nós ó pequenina
Ensina-nos
a amar e perdoar
Mártir
Francisca eu te clamo nas minhas orações
“Orai,
rezai, cantai”
Confortai
os nossos corações.
Daí
paciência, paz e conforto nas tribulações!
Sou
teu devoto Oh! Pequenina
Oh!
Menina Pura de Luz!
Levai
os teus devotos
Os
braços de Jesus
Daí
a nós o virgem Mártir
A
tua candura
Para
um grande abraço
Na
mãe de Jesus!
(Luna,
2008)
Diferente
dos discursos anteriores, esse troca a prosa pela poesia. Com tal passagem,
despe-se de intenção ligadas a uma racionalidade de base científica.
Parti
do território narrativo da prosa, de uma escrita marcada pelo oral. Agora,
chego à poesia, com seus versos mais afeitos à memorização chego, portanto, ao
território da voz. E é a ela que me volto a seguir.
Referência
Bibliográfica
Rios,
Dellano – O Povo Fez sua Santa./ Dellano Rios- Fortaleza: Secult, 2011. (Prêmio
Guilherme Studart) l. Literatura brasileira – ensaio I. Titulo
Transcrição
autorizada pelo autor Dellano Rios ao Professor Luiz Domingos de Luna, que a
todos, o direito de repostagem em blogs, sites e outros veículos de comunicação
para o Engrandecimento da Epistemologia Genética da Humanidade para o bem.